Mensagem do Padre Lucas, capelão militar da AMAN
“O Senhor Deus fez para Adão e sua mulher umas roupas de peles, e os revestiu”. Gn 3, 21
Conforme a simbologia histórica do Gênesis (1,1-2,4a), o Criador perguntou a Adão, feito de argila e espírito, agora fugitivo de Deus: “Quem te revelou que estavas nu? Porventura comeste do fruto da árvore que eu te havia proibido comer?”. O realismo daquele afastamento de Deus materializou-se na descoberta da própria nudez, significando que não há máscara que oculte a Deus a radical fragilidade humana decorrente da desobediência original. Todavia, em uma atitude de paterna compaixão, “o Senhor Deus fez para Adão e sua mulher umas roupas de peles, e os revestiu”. E, logo em seguida, saiu o pobre casal do Éden paradisíaco, sob ordens de cultivar a terra e adquirir o pão cotidiano ao preço do suor da própria face. O eterno Deus revestiu-lhes os corpos e ordenou-lhes que trabalhassem a terra.
Uniforme e trabalho formam, deste então, o binômio inquebrantável de todas as épocas e civilizações, como expressão de cultura para distinguir funções sociais e as profissões de cada povo. A veste humana ou sua ausência evidencia respectivamente a dignidade dos ofícios ou a perda da liberdade. Relevos assírios e hieroglifos egípcios comprovam que os prisioneiros de guerra eram quase sempre privados de suas vestes, como forma de impor-lhes o duro fardo psicológico de sua derrota militar.
Seja faraó, imperador ou déspota, nobre ou plebeu, presidente ou eleitor, atleta ou árbitro, seja profissional da saúde ou enfermo, sacerdote ou devoto, as vestes de cada classe resumem sua técnica e sua arte, revelando vocações e especialidades. Também a nossa Força Terrestre, atenta à contextualização de sua missão em cada época, reveste-se de uniformes adaptados à missão, perfazendo a típica normalidade das tropas profissionais contemporâneas.
Para os herdeiros de Caxias, que militam sob as brumas da honra e da glória, a Portaria de aprovação de nosso Regulamento de Uniformes assim preconiza: “o uso correto dos uniformes é fator primordial na boa apresentação individual e coletiva do pessoal do Exército, contribuindo para o fortalecimento da disciplina e do bom conceito da Instituição perante a opinião pública. Constitui obrigação de todo militar zelar por seus uniformes, pela correta apresentação de seus subordinados e dos que lhe são de menor hierarquia. […] Torna-se imperativo, elucida o mesmo RUE, observar a limpeza, a manutenção no brilho dos metais, o polimento dos calçados, a manutenção das cores originais frente ao desbotamento natural pelo uso e a apresentação dos vincos verticais nas peças de fardamento (RUE, Cap I, Art. 2º e 3º). Eis como aquela vetusta ação divina do Gênesis ainda reverbera nesta regulamentação.
Meus amigos, o verdadeiro soldado nasce na mesma data em que se paramenta feliz com sua primeira farda e seus coturnos. Quando o soldado reveste, nas madrugadas da vida ou nos intervalos da peleja, o seu garboso uniforme, ele não adota sobre a pele uma mera vestimenta padronizada; na verdade, ele se reveste de uma causa comum, guarnece sua mente com o sonho coletivo e se recama do ideal da liberdade que ousa defender com distintivos singulares. Fardado, o militar idealista sabe-se parte de uma equipe maior e dispõe-se a laborar em prol de um objetivo ainda melhor. Convocado e revestido pelo dever, torna-se a sentinela da paz e o definidor das batalhas, fazendo de seu uniforme o escudo visível da santa servidão.
Cada distintivo, sutache, bordado ou medalha que ostentamos na farda tem sua história dentro de nossa história, possui um significado proposital em nossa coletividade, e descreve, como um velho mapa, o itinerário feliz de nossas carreiras e sonhos. Nosso código de vestuário recorda-nos os sacrifícios e as emoções que abriram, no passado, as estradas de nossos corações e mentes.
E, se eventualmente tombar na guerra, este mesmo guerreiro armado, equipado e, então ferido, receberá surpreso de seu velho amigo, o uniforme, o último, silencioso e emocionado abraço desta vida terrenal. E, então, o uniforme do herói, por assim dizer, comovido em suas próprias fibras e tessituras, será a última testemunha do supremo sacrifício oferecido por seus nobres ideais e sua brava gente, será o único lenço destinado a recolher as lágrimas da Pátria agradecida. A intenção, todavia, permanece inalterada: garantir ao soldado identidade, orgulho profissional, proteção, conforto e, sobretudo, a camuflagem necessária à vitória na arte da guerra.
Oficiais, Cadetes e Praças precisamos compreender e preservar o valor histórico de nossos uniformes e a sua elevada importância para o ethos
militar também em nossos dias. Desde os uniformes no passado colonial, passando pela evolução da tecnologia têxtil e marcados pelas influências dos conflitos modernos, eles continuam a produzir impacto diário na identidade psíquica das tropas adestradas e em sua necessária funcionalidade operacional. Nesta época de propagandas e imagens, o uniforme militar repercute demasiadamente na percepção pública geral e impacta a eficácia de quaisquer operações.
Esporadicamente, vemos uma ou outra extravagância na apresentação pessoal, motivada por vaidades ou narcisismo, por outro lado, entretanto, percebemos como a apresentação pessoal serve de indicador a seus superiores, pares e subordinados, acerca do estado de ânimo do militar. É dever do superior hierárquico, observando os detalhes mais sutis do fardamento, decifrar a alma do subordinado, sintetizada ali na apresentação do vestuário e no brilho do olhar ou do coturno.
Acolhamos, por fim, a rica teologia de São Paulo, consignada na Epístola aos Efésios, enquanto revestimos nossa armadura do cristão: “Como
eleitos de Deus, santos e queridos, revesti-vos também de entranhada misericórdia, de bondade, humildade, serenidade, paciência […] Mas, acima de tudo, revesti-vos com o manto da caridade, que é o vínculo da perfeição”. Somente assim, caros irmãos de farda, a nossa melhor vestimenta, será o amor profissional. Se pensássemos deste modo, encontraríamos o mais pleno sentido das célebres palavras do Gen Octávio Costa, pronunciadas aos cadetes de 1982, na Aula Inaugural da AMAN: “A farda não é uma veste que se despe com facilidade e até com indiferença, mas uma outra pele, que se adere à própria alma, irreversivelmente… para sempre”. Essa verdade faz também de cada veterano um eterno soldado uniformizado, componentes da mesma tropa coesa.
Amemos, portanto, esta farda que reveste diariamente os corações de fidalguia, valores, entusiasmo e devotamento.
Que assim seja.
Leia a notícia na fonte: Academia Militar das Agulhas Negras
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